Se houve um efeito colateral bastante inusitado (para a maioria, pelo menos, talvez não para alguns mais antenados) das manifestações de junho passado, foi o recente fortalecimento do discurso de direita. Não que isso chegue a ser preocupante em escala eleitoral, mas é nítido que mais e mais pessoas agora perderam toda a timidez de se mostrar adeptos dessa linha de pensamento ou ideologia. Isso poderia ser uma coisa muito positiva (se fosse gerar mais debate), mas infelizmente, não é o que se percebe. Para não acharem (e garanto que alguns acharão, lerão só o primeiro parágrafo e já correrão pra comentar) que esse texto tem alguma coisa a ver com criticar o discurso de direita, não se trata disso, pois o anterior e já vociferado aos montes, de esquerda, é idêntico. Não se vê debate de ideias, não se vê ninguém buscando um meio termo e soluções conjuntas. O que se vê é só um apego incondicional à ideologia – seja ela qual for, sempre demonstra incrivel eficiência em acumular defensores, atrapalhar o debate e distorcer a realidade. O “problema da ideologia” não é de hoje, muito pelo contário, é tão velho como a inteligência e consciência humanas. Aderir a uma ideologia é tão humano como se apaixonar. E da mesma forma que, após repetidos períodos de intenso sofrimento trazidos por essas paixões, estamos sempre nos deixando apaixonar de novo – só para sofrer tudo de novo. A diferença é que a ideologia é uma amante mais promíscua e não rejeita ninguém. Ideologias se apresentam de muitas formas, umas mais brandas e flexíveis e outras mais duras e dogmáticas, mas invariavalmente são formas de ver o mundo (e se comportar nele) baseadas em um conjunto de ideias fixas: Deus criou o universo, a terra é plana, a posição dos astros determina quem somos, comer carne é errado, a culpa é do Estado, o Estado é a solução, o homem é naturalmente bom, o homem é naturalmente mal, etc. O fato inegável é que, durante nossas vidas, vamos nos afiliar a um sem número de ideologias sem sequer notar isso. A maioria de nós, em algum momento, já foi apresentado a alguma nova forma de ver o mundo e, sem muitas evidências daquilo, as vezes meramente por pressão ou afinidade de grupo, passou a se comportar de forma diferente e até defender aquelas ideias com unhas e dentes. Quem nunca? A armadilha está em não se dar conta de como nossas mentes “gostam” de se agarrar à conjuntos pré-estabelecidos e aparentemente logica e belamente arrumudos de ideias, que dão sentido à coisas que nos incomodam e geram dúvida. Apesar de não gostarmos de assumir isso, nossa mente está sempre disposta a desligar o senso crítico o suficiente para adotar uma ideologia como na canção do Cazuza “eu quero uma pra viver”. Voltando a eterna briga de esquerda e direita, o que me levou a escrever esse texto, foi exatamente ver alguns amigos, inclusive alguns que considero bastante inteligentes “sairem do armário” como defensores da direita, e demonstrarem o quão totalmente imersos estão com esta corrente política – senso crítico em mínimo, abertura para debate zero. Só postam coisas da Veja, vídeos, reflexões e textos de pessoas claramente de direita (mesmo quando em alguns casos, hipócritas e não se posicionam), sem nunca “dar uma chance” para um discurso mais moderado. Os de esquerda fazem igualzinho, mas o pior, é que agora, como que em resposta a esse crescimento do discurso conservador, passaram também a rebater postando cada vez mais só as coisas da esquerda, e agora as mais radicais, que muito provavelmente já liam há tempos mas ficavam “meio receosos” de parecer extremo. Eles debatem? Não. Eles discutem, cada um querendo mostrar com sua ideologia é brilhante e o resto é pura idiotice? Sim! Eles postam coisas que as vezes colocam em cheque os pontos centrais da ideologia? Nem fudendo. E o aspecto mais bizarro dessa coisa toda é um fenômeno recente, que se percebeu apenas com a popularização as redes sociais. Basta qualquer coisa na internet ter um teor crítico à determinada ideologia (seja política, religiosa, científica ou qualquer coisa que o valha), os defensores correm em auxílio dos “gurus” e das ideias centrais geniais e irrefutáveis da mesma. Isso já virou até motivo de chacota e “nomezinhos engracados” envolvendo tais gurus viraram lugar comum nas discussões e memes. A que tudo isso serve? Ao meu ver, nada de útil, nada de construtivo. Eu as vezes faço parte da zoação também, as vezes me pego no flagra atuando como “defensor” de uma linha de pensamento que apenas me agradou mas que não entendo muito a respeito. Somos pegos por essas armadilhas o tempo todo. Dependendo sua personalidade, você vai trocar de ideologia como muda de roupa, outros podem passar uma vida inteira acreditando e defendendo algo sem ter parado um minuto da vida para validar aquilo com critério. Lendo Krishnamurti há alguns anos, me deparei com um dos alicerces de seu pensamento que se resumia em “não há guru, não há mestre, você é o mestre, você é o guru, você é tudo!”. Ele dizia para não aceitar nada do que ele dizia e duvidar de tudo. Eu tinha dificuldade pra entender aquilo, pois ele passava uma montanha de ensinamentos e sabedoria em suas palestras e depois me fala pra não aceitar nada daquilo? Como assim? Eu estou concordando, estou gostando – não devo aceitar? Na verdade o que ele ficava ressaltando o tempo todo era que as ideias precisavam ser constantemente criticadas, e não apenas entendidas intelecualmente, mas “vividas” profundamente sem os diversos filtros de nossa cultura e passado – e que ninguém deveria considerar as ideias melhores ou piores por que vinham de uma figura como ele. Isso é muito simples de falar mas quase impossível de realizar na prática. Ao ler algo que “se encaixa” com aquilo que você acredita surge uma empatia natural com o autor daquelas ideias e isso cria um feedback de forma que, no futuro, você aceitará com mais facilidade (ou seja, com o filtro do senso crítico mal configurado) outras coisas que ele disser – e depois de outros que pensam parecido. Portanto, se você se pega constantemente lendo textos dos mesmos autores, confirmando aquilo que você acredita, criticando aquilo que você (ou melhor, a ideologia que você escolheu) condena – há grandes chances de você estar viciado nessas ideias, e preso num espiral de “confirmações” e “irmãos na causa” incapaz de perceber que por mais sentido que aquilo tudo possa fazer, não pode ser a verdade única e absoluta, provavelmente está repleta de falhas factuais e lógicas, talvez algumas que você até reconhece mas finge não ver. Ninguém está livre disso. Nossa mente é programada para se agarrar nessas coisas, procurar o caminho mais curto e menos trabalhoso para fazer sentido do mundo e de tanta complexidade. Como diria Krishnamurti, só mesmo a vigilância contínua e a completa recusa a dar valor a certas ideias baseadas no seu autor, pode nos armar contra essas armadilhas e tornar possível o um senso crítico refinado e real confronto de ideias, e não as infinitas discussões de facebook onde cada um só quer mostrar como fez seu dever de casa e leu mais livros “pra confirmar as ideias que acredita serem a resposta pra tudo.