Por Lucas Xavier
As cotas raciais entraram em vigor no Brasil em 2002 através da aprovação da “Lei de Cotas” e, desde então, formou-se um debate em toda a sociedade brasileira que já era travado há muito tempo pelo movimento negro. De um lado, a elite brasileira alega que a criação de vagas especiais para pessoas negras e pardas configura um racismo do Estado brasileiro, por acreditar que, ao ceder essas vagas, o Estado estaria alegando que “negros são inferiores, menos capazes, menos inteligentes”, etc. Do outro lado, as mais representativas unidades do Movimento Negro nacional defendem não só a aplicação da Lei de Cotas, mas sua expansão progressiva nas universidades do país. Esse artigo tem como objetivo principal investigar a situação do negro no Brasil, em especial no mercado de trabalho e nas universidades, e com isso traçar uma argumentação racional que objetive esse debate. Para tal, se faz necessário voltar ao passado, na formação do Brasil, para que se esclareça a progressão histórica dos negros no país e com isso se elucide a situação atual na qual estão submetidos milhões de negros e negras. Portugal trouxe para o Brasil aproximadamente 4,5 milhões de escravos vindos da África, uma soma que chega perto da metade do número de escravos trazidos para todo o resto do continente americano. Os africanos trazidos ao Brasil vieram pra substituir o trabalho que originalmente foi imposto aos nativos indígenas, mas que para os colonizadores “não eram aptos ” ao trabalho forçado. A escravidão só termina com a Lei Áurea, em 1888 – 388 anos após o “descobrimento” do Brasil. Isso significa que, durante a maior parte da história brasileira, os negros estavam submetidos à escravidão. Não só isso é verdade, como é importante lembrar que, ao contrário do que defendem os brancos do Brasil (alegadamente, que a escravidão é “muito antiga” e “coisa de um passado muito remoto”), a abolição só completou seu centenário em 1988, período em que a maior parte dos jovens de hoje começavam a nascer. São ao todo 126 anos desde que a Lei Áurea acabou com a escravidão formal, um período historicamente muito curto para que se possa falar do contexto escravocrata como “totalmente ultrapassado”. São precisos muitos anos e muitas gerações até que todo um povo se reerga de algo tão vil como a escravidão do Brasil, e para isso se faz necessária a contribuição e ajuda do Estado, que tem como dever inserir essas pessoas totalmente na sociedade, tanto economicamente, como culturalmente e politicamente. Entretanto, isso foi o oposto do que ocorreu no Brasil. Em 1850, 33 anos antes da abolição total da escravidão, foi aprovada a Lei de Terras, que tinha como principal objetivo garantir que os grandes fazendeiros tivessem posse da maior parte da estrutura fundiária brasileira. A lei organizava a compra e venda de terras, tornando proibida a concessão por meio do usucapião e possibilitando apenas que terras fossem propriedade por meio da compra ou da doação por parte do Estado. Ou seja, se um escravo negro vivesse num pedaço de terra, e ali garantisse sua subsistência e de sua família, por maior que fosse o tempo de seu trabalho, ele não poderia obter a propriedade daquela terra, que acabava nas mãos dos grandes proprietários. Para sobreviver, então, o ex-escravo tornava-se um trabalhador assalariado, submetido a um patrão que anteriormente era seu dono; assim sendo, sem nenhuma possibilidade de afirmação econômica. Abandonado à própria sorte, o negro brasileiro começou a povoar os subúrbios e, sem possibilidade de inserção graças a falência administrativa dos serviços públicos (os únicos aos quais o negros tinham acesso), viveu (e vive) mesmo após a abolição separado do branco, em favelas, nas ruas, roubando e prostituindo-se para sobreviver em uma sociedade que categoricamente o excluia das relações de produção e consumo.Graças a isso, os estereótipos negativos (“o negro é ladrão, o negro é vulgar) que eram jogados aos negros entravam em contato com a realidade diária, permitindo a afirmação do racismo no país como componente fundamental da estrutura social brasileira. Essa realidade permanece nos dias de hoje, fazendo-se observar nos índices de perseguição policial: no Rio de Janeiro, estado com 11% de negros, negros formam 32,4% dos mortos pela polícia, enquanto que a maioria branca (54,5%) corresponde a 19% das vítimas policiais. Ou seja, negros são minoria no RJ, mas são os principais perseguidos pelos braços armados do Estado. O relatório da PNUD aponta que ““A proporção de pretos, entre as vítimas da violência policial, é três vezes a proporção desse grupo na população como um todo”. Documento da Polícia Militar de São Paulo Revela o Racismo Presente na Instituição policial. Documento da Polícia Militar de São Paulo Revela o Racismo Presente na Instituição policial. E quais são os espaços que os negros ocupam hoje? O IBGE apura que 50,7% da população brasileira seja preta ou parda, num composto de de mais de 100 milhões de pessoas, fazendo do Brasil a maior nação negra fora da África. Numa sociedade onde prevalecesse a igualdade de direitos, era de se esperar que essa porcentagem balanceada fosse encontrada em todas as partes, mas não é isso que acontece. Quando se verifica a classificação étnica dos presídios brasileiros, negros e pardos formam o perfil de 60,3% dos presidiários, quase o dobro da porcentagem de brancos na mesma situação (36,6%). Nas favelas, 66,1% das casas são chefiadas por negras ou negros. Da totalidade de casas chefiadas por brancos no país, 3% dessas casas se encontram em uma favela. Esse número mais que dobra quando se avalia a porcentagem de casas chefiadas por negros, onde 7% estão localizadas em favelas. A situação se ilustra de forma ainda mais assustadora quando se avalia o perfil da elite brasileira. Aproximadamente 96% dos cargos executivos pertencem a pessoas brancas, sobrando a negros e pardos a insignificante porcentagem de 3,4%. No topo de empresas, então, essa realidade é ainda mais assustadora: apenas 1,8% é negra. Os brancos ainda possuem privilégios na hora de receber o salário: o IBGE apurou que brancos recebem até 70% a mais que negros pelo mesmo trabalho. Apesar do número ser baixo, a porcentagem de negros no ensino superior triplicou nos últimos 10 anos, graças às cotas raciais. A situação não é diferente nas universidades. Em 2010, o curso de Medicina formou apenas 2,7% de negros; assim como apenas 6,1% dos estudantes que prestaram o ENADE nesse mesmo ano eram pretos ou pardos, enquanto o número de brancos presentes nas universidades é maior que o dobro (31,1%) do número de negros (12,8%). texto garis Formandos de medicina na Bahia, estado de maioria negra, e garis aprovados em concurso no RJ, estado onde negros formam 11% da população: dualidades do racismo brasileiro. Ou seja, é seguro afirmar que o negro brasileiro não tem estrutura econômica, e que apesar de constituir mais da metade da população, praticamente inexiste nos espaços de elite e privilegiados. A partir dessa perspectiva é que se esclarece o objetivo da reserva de vagas no ensino superior para estudantes negros, uma vez que o Estado brasileiro nunca se importou em inserir socialmente aqueles que até pouco tempo eram escravos. Não se trata, portanto, de uma suposto “coitadismo” do Estado brasileiro para com os negros, tampouco de qualquer tentativa de estabelecer um “racismo reverso” tomando a vaga de brancos; se trata de ocupação de espaços que sempre foram negados para os negros brasileiros e que, através da inserção, formalizam o combate ao racismo estrutural que se formou no Brasil e que vitimiza mais da metade de sua população. É interessante observar a elite branca do Brasil se preocupar com um assunto que nunca teve importância em suas pautas: o racismo. É estranho ver como tão enfaticamente os brancos brasileiros rejeitam as cotas se preocupando com “a forma com que o Estado vê o negro”, quando nunca se preocuparam com isso antes, quando na verdade sempre se beneficiaram da exclusão do negro do mercado de trabalho. Entender a realidade por trás desse discurso é desmascarar essa ideia que tem como principal objetivo político manter o negro no seu mesmo lugar de subserviência, e dar ao branco todas as oportunidades enquanto as retira dos negros. É engraçado e irônico ver a palavra “racismo” ser dita por aqueles que nunca pararam pra problematizar a ocupação de espaços sociais, a violência policial – a pobreza em si. É claro que isso acontece por uma razão objetiva, e é essa razão que deve ficar explícita, uma vez que o discurso anti-cotas é adaptado à vontade para persuadir negros e negras de forma desonesta. Defender a aplicação das cotas raciais – e mais que isso, sua expansão progressiva nas universidades federais – é necessário para cessar uma perseguição histórica que negros sofrem tanto do Estado e seus braços militarizados, quanto da sociedade civil como um todo. Não é sobre vitimismo, mas sim uma análise crua da realidade brasileira e um alinhamento que permita uma mudança que não virá só com as cotas raciais, mas sim com a aplicação incansável de diversas outras políticas que busquem ascender o negro no Brasil, mesmo que tardiamente. __________________________ REFERÊNCIAS: [1]https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/escravidao-no-brasil-escravos-eram-base-da-economia-colonial-e-imperial.htm [2]https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/lei-de-terras-lei-de-1850-contribuiu-para-manter-concentracao-fundiaria.htm [3]https://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/negro_e_vitima_maior_de_crime_e_policia.pdf [4]https://oglobo.globo.com/politica/censo-2010-populacao-do-brasil-deixa-de-ser-predominantemente-branca-2789597 [5]https://noticias.r7.com/brasil/numero-de-Presos-no-brasil-Chega-a-quase-meio-Milhão-06112012 [6]https://www.dgabc.com.br/Noticia/103984/negros-sao-maioria-nas-favelas-aponta-Estudo-do-ipea [7] https://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/161/artigo242497-1.asp/ [8]https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/06/29/brancos-ganham-duas-vezes-mais-que-negros-e-dominam-ensino-superior-no-pais-mostra-censo-2010.htm [9]https://www.pco.org.br/conoticias/negros/negros-sao-os-que-menos-representam-cargos-executivos/syz,o.html [10]https://guiadoestudante.abril.com.br/vestibular-enem/negros-sao-minoria-formados-ensino-superior-741818.shtml Leia a matéria completa em: Cotas raciais e a hipocrisia branca - Geledés Follow us: @geledes on Twitter | geledes on Facebook