Por Fernando Filgueiras
Ao longo dos anos 1990, a ideia de que as ideologias políticas de direita e de esquerda estariam em crise foi motivo de um forte consenso e o caminho traçado pela globalização seria o de uma terceira via. Àquela altura, soava como esquizofrenia ou anacronismo defender qualquer posição ideológica no plano político. A globalização, então, aplainou o conflito ideológico entre direita e esquerda, atribuindo à terceira via a solução para os problemas sociais e econômicos dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. No caso do Brasil, especificamente, a sensação que a geração formada nos anos 1990 carrega nos ombros é a de que as ideologias não fazem muito sentido, porque direita e esquerda dissolveram-se em um discurso político cantado em uníssono. De fato, promover enquadramentos ideológicos é uma das tarefas mais difíceis da análise política. A chance de erro em função das idiossincrasias do analista é gigantesca. Porém, ela faz sentido se concebida não como um juízo estético, mas como um juízo de valor. O que a confrontação entre direita e esquerda revela é uma diferença de valores fundamentais, os quais organizam a forma como indivíduos ou grupos políticos interpretam e constroem a realidade. Os juízos de valor importam porque eles permitem formatar de maneiras diversas problemas políticos e soluções. E estes juízos são constituídos publicamente, tendo em vista os instrumentos de comunicação social. Entretanto, o que a diferença entre os discursos de direita e de esquerda tem revelado é uma disputa sincera por juízos estéticos na política. Vamos desde a direita no armário à esquerda caviar. Expressões estas que são difundidas nas redes sociais e que tomo emprestado de analistas políticos da mídia para tratar de uma pobreza recente do debate político. Os juízos estéticos na política fazem com que tanto a esquerda como a direita fiquem submersas num campo em que a avaliação movida pelo que é belo ou feio conta mais do que a avaliação movida pelos valores. Curiosamente, a comunicação pública tem contribuído pouco para entender a importância das ideologias políticas. Mas, no plano da sociedade, as diferenças ideológicas têm ganhado novos contornos e categorias. Protestos reabriram disputa ideológica por dividendos eleitorais A movimentação no plano da sociedade tem feito frutificar um novo debate político movido por ideologias, que tem pegado políticos profissionais e burocratas de calças curtas. O ponto de mudança foi as manifestações de junho e julho passados. As manifestações abriram o conflito ideológico, tendo em vista a disputa, ainda em curso, pelos significados dos atos políticos daquele momento. A crítica à ação dos governos por meio da deficiência de suas políticas públicas e a denúncia de um quadro de injustiças sociais colocaram em xeque os políticos profissionais e acionaram os enquadramentos ideológicos. Comum a esses enquadramentos é a denúncia da corrupção crescente. À esquerda, a denúncia do fascismo praticado pelo Estado e seus agentes contra as massas de oprimidos, mantendo o status quo das desigualdades. À direita, a denúncia do vandalismo contra o patrimônio e o perigo da ação das massas, que corrompem a ordem e os bons costumes. Ambas as posições querendo vencer a disputa pelos significados das manifestações, que podem render ótimos dividendos de poder e dividendos eleitorais. Mas onde está a direita no Brasil? Ela não está em articulistas de mídia, que reforçam um debate estético e estéril sobre a política. Ela está envolvida em uma profunda capilaridade social, estando presente no plano da sociedade brasileira. Em estudo coordenado pelo professor Adriano Codato, da Universidade Federal do Paraná, demonstra-se que a direita no Brasil não é a figura do coronel caricato, conservador do sistema escravocrata e senhor de tudo no plano local. A direita brasileira tem sido recrutada majoritariamente entre empresários, no espaço urbano, tendo em vista uma ação modernizadora. A agenda de direita movida pela crítica à interferência do Estado na economia, na irracionalidade do gasto público, na exasperação dos impostos, na ineficiência da assistência social e na irracionalidade das massas na democracia está presente mais no plano social do que propriamente institucional. E tem ganhado tons de forte conservadorismo. Por esta razão há um sentimento de incompatibilidade entre uma sociedade conservadora, por um lado, com um sistema político democrático e mais inclusivo, por outro lado. A ressonância recente de um pensamento de direita no Brasil chama a atenção porque desde a redemocratização não havia quem se identificasse com tal ideologia. Sobretudo pela questão estética de pertencimento ao regime autoritário inaugurado em 1964. Do ponto de vista político, não há problema nenhum com as ideologias de direita, mesmo que junto venham carregadas do tom de conservadorismo que isso implica. Na democracia, o pluralismo é fundamental. Só será um problema se com essa nova direita vier um antigo tom antissistema, que denuncia a política como inerentemente corrompida, as massas como ignaras e que coloque a democracia em risco. No caso do Brasil, só é possível ser conservador se for para conservar a enorme iniquidade social que reina nessas terras desde Tomé de Souza. Aí reside o problema e o fulcro das contradições dos valores políticos.